Conto Erótico - A Sombra da Luz - Capítulos 38 e 39
🔥✨A SOMBRA DA LUZ 🔥✨
Autora : Nana Pauvolih
CAPÍTULO 38
GABRIEL CAMPANARI
Eu dirigi como um louco. Desrespeitei todas as possíveis leis de trânsito, minha cabeça a mil, pensamentos desconexos e perturbadores me deixando mais nervoso do que fiquei na vida. Segui o carro de Davi pelo rastreador, vendo-o em Conservatória e a caminho do lago em Valença, onde fomos pescar algumas vezes quando novos. Não queria acreditar, mas meu pânico era real demais. Assim como o medo por Daniela.
Tentei ligar para ela e para ele. Nenhum dos dois atendia. E então, de repente, meu celular começou a tocar. Era um número desconhecido, mas atendi na hora.
— Salve a Daniela! – Uma voz de mulher berrou. – Ele a está matando, perto do lago!
— O quê? – Acelerei ainda mais, virando na rua que levava até lá, o desespero me invadindo. – Quem é?
— Amiga dela! Gabriel, eu vi e ouvi! Pela câmera dela! Mas agora ele a tirou do carro e a arrastou para fora! Ai, meu Deus! Diga que está perto! A polícia não quer acreditar em mim!
— Estou perto. – Arfei, muito nervoso, correndo muito. – É o Davi?
— É ele! É um assassino!
Fiquei gelado, como se tomasse uma surra, mil agulhadas percorrendo meu corpo. Apesar da desconfiança, tinha rezado para estar enganado. Agora a realidade vinha pior do que tudo. A senhora continuou a chorar e gritar:
— Dani levou uma arma, mas ele a derrubou no chão do carro e bateu nela! Ai... – Chorava copiosamente. – Eu não devia ter deixado a Dani ir...
— Estou chegando. Vi o carro dele. – Parei meu carro ao lado. Coração acelerado, pânico me consumindo. Pulei para fora, indo direto ao carro de Davi, buscando a arma.
— Acho que a levou para o lago! Rápido! Pelo amor de Deus!
Engatilhei a arma, guardei o celular no bolso e, em meio à chuva e à lama, corri entre as árvores até à beira da água, desesperado, respiração descontrolada, terror, medo, desespero, raiva, tudo lutando dentro de mim. Rezei a Deus para não chegar tarde demais. O pavor me engolfava e movia. Minhas pernas iam mais rápido que tudo. E então eu os vi e parei, estarrecido com a cena.
Daniela nua de bruços na beira do lago, de frente para mim, cheia de lama e sangue no rosto, seus olhos arregalados, sem poder acreditar que me via. Montado atrás dela, segurando-a pela garganta com uma das mãos e um canivete com outra, Davi se esfregava nela e dizia algo em seu ouvido, como um maldito sádico, louco, diabólico. Estacou ao dar comigo e empalideceu, paralisado, olhos imobilizados pela surpresa.
O tempo parou. Até meu coração falhou. Era surreal. Parecia uma cena de filme de terror, de algo inacreditável, fora da realidade. Mas a cena era bem real, assim como o meu pânico, a minha raiva e aquele medo voraz, que quase me prostrou.
Daniela mal respirava. Davi estava em choque e piscou, tentando afastar minha visão da sua frente. Fui o primeiro a me recuperar e ergui a arma engatilhada, apontando direto para ele. Isso o alertou.
— Solte-a. – Falei baixo. Por dentro eu tremia, sangrava, chorava. Mas minha mão estava firme no gatilho.
— Ou o quê? – Davi não se moveu, muito sério. – Vai me matar?
Ele era uma das pessoas mais importantes da minha vida. Como eu poderia matá-lo? Como num flash, vi imagens nossas do passado, quando ainda éramos garotos e jogávamos bola, corríamos atrás de pipa, ríamos juntos. Davi mais velho, sempre rindo, sempre ao meu lado. Vacilei por dentro, sem acreditar que aquilo estava acontecendo.
Então fitei Daniela, nua e machucada, com sangue e lama no corpo, prostrada embaixo dele como um animal prestes a ser abatido. Olhei a lâmina em seu pescoço, marcando sua pele, e senti um medo atroz de que a matasse. Como fizera com Monalisa.
— Se for preciso, eu mato, Davi. Agora, solte-a. – Falei frio, quando por dentro eu fervia.
Davi suspirou, mas não se moveu. Seus olhos me avaliaram, sem aquela alegria que lhe era tão peculiar. Estava sério como um estranho. O estranho que fizera parte da minha vida, mas que não enxerguei.
— Eu não posso, Alemão. Fui longe demais.
— Pare com isso. Você precisa de ajuda. Vamos, Davi.
— Ajuda? Acho que sou louco? – Franziu o cenho, atento a mim.
Eu fitava a navalha, com medo que cortasse Daniela. Evitava os olhos dela para não me distrair. Encarei meu amigo.
— Por que fez isso? – Mal conseguia respirar, a dor violenta me corroendo por dentro. – Por quê, Davi?
— Sou assim. Aprendi que sou assim desde muito cedo, cara. Um animal faminto. Não sei, tive muito tempo para analisar, mas acho que simplesmente é isso. Um fato.
— E o Davi que conheci a vida inteira? Foi uma mentira? – A arma continuava firme em minha mão.
— Não. Sou eu também. A Luz, Gabriel. A luz que se tornou mais forte em mim depois que te conheci. Precisa entender. Eu seria um nada, uma sombra eterna, só um animal. Mas você me salvou, amigo. Eu quase consegui. Juro que tentei! Lutei contra essa fome, mas ela sempre vem. – Apertou Daniela mais forte, erguendo mais sua cabeça, deixando-me apavorado, nervoso, sem ar, preparado para tudo. Mas parou, respirando fundo, seus olhos negros brilhando muito. – Você se tornou o que eu queria ser. O filho amado. O garoto generoso. O menino estudioso e responsável. Aquele que todos admiravam, que todas as garotas queriam. Imitei você. E te amei tanto, cara, mas tanto, que se tornou meu modelo de perfeição! Mas nasci com essa falha. E aprendi a conviver com ela.
Eu estava chocado, abalado, sem acreditar em tudo aquilo. Davi balançou a cabeça, parecendo cansado.
— Não se sinta culpado, não falhou comigo. Eu é que falhei. Não fui sempre como você queria. Não consegui!
— Nunca quis nada, Davi. Só fui seu amigo, seu irmão. Nunca exigi nada de você.
— Sei que não. Mas eu queria ser perfeito. Para que me amasse sempre, mais do que tudo. Mesmo sabendo que por dentro eu era mais do que você imaginava. Só que aquela mulher... A irmã dessa maldita...
Parecia que ia cortar o pescoço de Daniela, cheio de ódio.
Gritei, fora de mim, dando um passo à frente:
— Para com isso, porra! Vou atirar!
Ele parou, mas não a soltou. Fitou meus olhos.
— A que ponto nós chegamos, amigo. Era isso que eu queria evitar. Ia tirar essa mulher da nossa vida e tudo voltaria ao normal, como devia ser. Não era para você estar aqui.
— Por isso matou Monalisa? Para tirá-la da nossa vida?
– Da sua vida. Ela ia tomar você de mim.
Suas palavras me deixaram gelado, sem poder acreditar. Não podia ser aquilo. Mas acenou com a cabeça.
— É isso. Você e eu, Gabriel. Como sempre foi. — Sempre fomos amigos, irmãos. Nada mais que isso.
— Muito mais que isso! – Gritou.
Fitei os olhos de Daniela, cheios de medo, de raiva e de pena. Fixos em mim. O que eu sentia por ela me deu forças de continuar. Não importava o que acontecesse ali, eu não o deixaria matá-la.
— Isso é obsessão. – Falei baixo.
— É, acho que é. Mas chega de lutar. E agora, cá estamos nós. – Sorriu lentamente, como o Davi que conheci a vida inteira. Sua mão amparou melhor o pescoço de Daniela e ajeitou o canivete, firme. – O que você decide?
— Não preciso decidir nada. Estou esperando soltar Daniela. — E o que mais? Ir direto para a prisão? Um hospício?
— Um lugar onde possa receber ajuda. Prometo não abandonar você.
— Vou ficar preso como um animal, enjaulado. E você com essa puta! – Cuspiu as palavras, furioso. – Nunca! Pense bem, Gabriel. A escolha está em suas mãos. Se não apertar esse gatilho, eu sumo com ela. Ninguém vai saber ou ter provas. Vamos voltar à nossa vida, irmão, como sempre foi. Se apertar esse gatilho, prefere ela. É até simples.
— Pare com isso. – Dei mais um passo à frente, a chuva fina molhando meu rosto.
— Vou contar até três. E então a corto. Decida.
— Cale a boca e a solte, porra! Agora!
— Um.
— Davi, estou falando sério! – A lágrima escorreu do meu olho, incontrolável, o pavor me deixando gelado. – Para!
— Dois. – Sorriu e chamas pareceram brilhar em seus olhos. Senti que ia atacar.
Abriu os lábios e atirei.
Foi como em câmera lenta. Os olhos de Daniela arregalados, cheios de pânico. O tiro cravando-se na testa dele. Sua mão largando o canivete, mas antes cortando-a, o sangue surgindo. O corpo de Davi sendo arremessado para trás.
Gritei e corri. Fui envolvido por sentimentos horríveis, desesperadores, como se um inferno viesse dentro de mim. Sabia que o tinha matado. Matei meu melhor amigo, meu irmão, meu companheiro. Mas não corri para ele.
Caí ajoelhado no chão ao lado de Daniela e a puxei para os braços, completamente fora de mim, com medo de vê-la morta também. Mas me olhou, viva, assustada, sangue descendo do pescoço.
— Ah, meu Deus... – Arranquei minha camisa, deitei-a em minhas pernas, pressionei contra o ferimento.
— Foi... arranhão... – Conseguiu murmurar rouca, a voz falhando, vendo meu desespero. Afastei a camisa e o alívio me engolfou ao ver que era só um arranhão na pele, sem profundidade.
Abracei-a forte, enfiando meu rosto entre seus cabelos molhados e enlameados, sentindo o pranto me varrer, me fazer soluçar.
— Cal...ma ... – Daniela tentou me tocar.
Olhei para a beira do lago e o vi ali, no raso, olhos abertos para o céu. A dor me rasgou. E eu não pude me controlar.
CAPÍTULO 39
GABRIEL CAMPANARI
Foi difícil enfrentar a realidade, reagir. Eu queria rebobinar o tempo, acordar, perceber que nada era real. Mas a chuva continuava apunhalando, o corpo nu e ferido de Daniela tremia, Davi estava ali, morto. Engoli o pranto, sem poder olhar de novo para ele, ainda sem acreditar naquele inferno. Quando ela entrou em choque, controlei minha dor e reagi.
Envolvi minha camisa em volta de seu corpo e levantei com ela em meu colo, amparando-a contra o peito. A imagem de Davi morto, com um furo na testa e um filete de sangue escorrendo enchia minha mente e me deixava tonto.
Pensei que não aguentaria. Vi seu sorriso de toda uma vida e mais uma vez não pude acreditar em tudo que acabara de acontecer, em quem ele era.
Olhei para frente e dei um passo. Mais outro. Até deixar aquilo para trás e seguir, com Daniela nos braços, sacudida pelos tremores violentos. Talvez eu nunca me recuperasse. Ou talvez o tempo se encarregasse daquilo. Eu não sabia. Só sabia que ela precisava de mim.
Depositei-a no carro, molhada e tremendo, machucada, cheia de lama. Minha camisa era pouca para cobri-la, mas eu não tinha nada mais. Não pus o cinto. Puxei-a para perto de mim, para aquecê-la um pouco, enquanto pegava o celular. A amiga dela continuava na linha e falei imediatamente:
— Daniela está bem. Estou levando-a para casa.
— Ai, meu Deus... – A mulher começou a chorar. – Jura? Você jura?
— Sim, está com a garganta machucada, não pode falar, mas... vai ficar bem.
Ela gritou aliviada coisas que não compreendi. Depois que desliguei, olhei para o carro de Davi, ao lado do meu. Uma tristeza horrível me envolveu. A dor era abissal, sem fundo, contorcida. Respirei fundo, lembrando de seu corpo ao lado do rio. Tinha que avisar as autoridades, ligar para meu pai e irmão, contar à minha família. Mas primeiro cuidaria de Daniela. Liguei o carro e o pus na estrada.
Foi uma viagem sofrida e silenciosa. Tremia e gemia, meio acordada, meio em choque. Mas só de ouvi-la respirar, de saber que por pouco eu a perdia, consegui me controlar. Chegamos em frente ao hospital e saí com ela no colo, cobrindo-a ao máximo com a camisa. Estava muito quieta, mole.
Trouxeram maca e a levaram para dentro, enquanto eu caminhava ao lado e explicava mais ou menos o que tinha acontecido.
— Vamos ligar para a polícia. Fique aqui, cuidaremos dela. – O médico afastou-se, com um enfermeiro empurrando sua maca. Parecia adormecida.
Respirei fundo e fui até a recepção. Enquanto esperava a polícia chegar, andei até um canto, molhado, sem camisa, arrasado. Liguei primeiro para meu irmão mais velho, Rômulo. Disse a ele que estava no hospital com uma amiga, que passava bem. Mas que precisaria dele ali. Pedi que trouxesse meu pai. Ficou nervoso, mas preferi não contar aquela coisa horrível por telefone.
Sentei em uma cadeira de canto e fiquei lá, terrivelmente ferido, sangrando por dentro. Dois policiais chegaram e ali mesmo contei tudo. Na mesma hora entraram em contato com a delegacia e informaram o ocorrido. Pegaram meus dados, fizeram anotações, disseram que estavam partindo para lá em busca do corpo de Davi. Expliquei que a arma ficou lá, no chão.
Eles saíam quando meu pai e meu irmão entraram nervosos, vindos do sítio. Correram para mim. Com muito sacrifício, consegui me levantar. Perguntaram o que tinha acontecido. Meu irmão me amparou quando cambaleei, um pouco tonto. E me ajudou a sentar de novo.
Com o peito doendo e a garganta travada, contei tudo. Vi o horror, o pânico, a raiva e a dor no rosto deles. Meu pai chorou copiosamente, sem poder acreditar. Rômulo balançava a cabeça, furioso, quase explodindo.
— Eu sempre soube que havia algo errado com ele, que não era quem mostrava. Não sei como não me matou, sabendo que eu desconfiava.
— Por que você era meu irmão. — Murmurei, arrasado, com lágrimas nos olhos, enquanto meu pai me abraçava. Era como perder um filho também.
Ficava uma sensação de impotência, além da dor, pois, como não vimos o que Davi fazia? Como convivemos tantos anos com um assassino no meio da nossa família? Mesmo com as rusgas entre ele e Rômulo, não passou por nossa cabeça que fosse um louco psicopata. Nem meu irmão chegara a cogitar algo tão grave. Samara cresceu adorando-o. E ele nunca fez nada além de mimá-la, enchê-la de carinho e de presentes. Adorá-la.
Permaneceram ao meu lado até eu ser informado que Daniela tinha sido lavada, medicada e que dormia profundamente. Só acordaria no dia seguinte. Estava com o braço direito quebrado e uma costela rachada, além dos machucados. Mas se recuperaria. Ao menos fisicamente.
Tínhamos que contar à minha mãe e à Samara tudo que acontecera. Eu sentia frio e estava muito mal, minha cabeça explodindo. Mas me recusei a sair do hospital. Rômulo me garantiu que era só para tomar um banho, pôr uma roupa e voltar. Minha mãe também só sossegaria se me visse bem. E assim concordei.
Foi horrível em casa. Elas não quiseram aceitar. Parecia um pesadelo, uma mentira. Mas viram meu estado e choraram, lamentaram, mas me agarraram, garantindo que não tinha culpa, que não poderia ter deixado Davi matar mais uma pessoa inocente. Eu sabia disso. Mas a dor permanecia.
Depois de um banho e roupa seca, quiseram me alimentar, me convencer a ficar. Mas eu estava irredutível. Não conseguia parar de tremer e de pensar em Davi morto naquele lago, mesmo quando nos informaram que o corpo havia sido removido. Eu nunca esqueceria aquela cena. E só ficar perto de Daniela, vê-la bem, poderia me trazer algum conforto. Rômulo me levou ao hospital e no carro dele, liguei de novo para a amiga de Daniela.
— Quero muito ir ao hospital ver a Dani! – Disse desesperada, chorando. – Mas sou cadeirante! E não tem nenhum vizinho de carro que possa me levar. Estou há uma hora no ponto de ônibus!
— Estou passando aí com meu irmão para pegar a senhora.
— Obrigada. — Deu o endereço.
Paramos com o carro em frente ao ponto de ônibus e vi a senhora magra, cheia de rugas, com os olhos vermelhos de tanto chorar. Ela me fitou, meio perdida, e segurou minha mão.
— Obrigada. Por salvar a Daniela.
Não consegui dizer nada. Tudo em mim gritava, parecia prestes a desabar. Uma parte se mantinha meio anestesiada, a outra berrava de dor. Eu precisava me manter em movimento, não podia parar, pensar muito.
Falou que ia para o carro sozinha, mas a ajudei e a depositei no banco da frente, deixando a cadeira no porta-malas. Sentei atrás e Rômulo pôs o carro em movimento. Ficamos em um silêncio pesado e ocasionalmente meu irmão me lançava olhares de pena pelo retrovisor. Não falou mais de Davi, sabendo bem o que ele havia sido para mim, entendendo meu sofrimento. A senhora se virou um pouco para me olhar.
— Pode me contar tudo o que aconteceu, Gabriel?
Eu não aguentava nem pensar em tudo aquilo, quanto mais falar. Mas vi seu nervosismo, sua apreensão e só consegui murmurar:
— Ele está morto.
Ela moveu a cabeça, como se entendesse que era por minha culpa. Sua voz vacilou, emocionada:
— Sei o quanto está sendo difícil para vocês, mas ele era um monstro. Matou minha única filha. Talvez se lembre dela.
— Quem? — As coisas só pioravam.
— Fabiana. Estudou na mesma escola que você. Foi dada como desaparecida há doze anos.
— Eu me lembro. – E lembrava mesmo. Tinha até dado uns beijos nela. Na época só se falava do seu desaparecimento. Fiquei chocado por ter sido vítima do Davi. – Não imaginei algo assim.
— Ninguém nunca acreditou em mim. Eu sabia que estava morta e a polícia não fez nada. Por anos fui na delegacia, cobrei, exigi. Agora, com a morte do rapaz e os corpos que apareceram, voltei lá, falei com o delegado e ninguém quis me ouvir. Achavam que eu era louca. – Parou e respirou fundo. – E quando Davi pegou a Daniela e liguei para a polícia, nem ligaram. Se não fosse você, ela morreria.
Minha cabeça explodia. Olhei pela janela, exausto, doído. Sabia que não tive opção. Fiz a única escolha possível e tê-la viva me alentava. Mas ainda buscava outra solução para não ter matado Davi. Eu sentia que estava por um fio, que aquela realidade me derrubaria em algum momento.
— Mas sua filha nunca foi encontrada? — Perguntou Rômulo.
— Nunca. Talvez agora... Quem sabe. Dani investigava vocês e pôs uma câmera na casa de Davi. Vimos que ele tinha uma espécie de diário em seu cofre. Talvez lá possamos encontrar mais respostas.
Eu me virei para ela, a voz baixa:
— Filmaram minha casa também?
— Não. – Fitou meus olhos. – Cobrei muito isso de Dani e ela inventava desculpas. Acho que estava apaixonada por você.
Fiquei quieto, pensando em tudo que Margarida disse, um cansaço enorme pesando em meus ombros.
Quando chegamos ao hospital, deixaram que víssemos Daniela, mas os medicamentos a faziam dormir direto. Margarida chorou e beijou sua mão esquerda, pois a direita estava engessada. Rômulo ficou quieto, mais para me dar apoio. E eu apenas a olhei, pensando o quanto estive perto de perdê-la.
Saímos do quarto e dois policiais estavam lá, me aguardando para me acompanhar até a delegacia e prestar um depoimento formal. Pedi que Rômulo levasse Margarida em casa e ele concordou, garantindo que voltaria para me encontrar na delegacia. Antes que saíssemos, a senhora me puxou por um abraço e murmurou:
— Obrigada. Que Deus o proteja sempre. – Fitou meus olhos, quando me ergui. – Você não teve culpa de nada, Gabriel. Nenhuma.
— Eu sei.
Na delegacia tudo foi estranho, como em câmera lenta. Repeti todo o ocorrido, sentindo um frio que vinha dos ossos, como se tudo fosse irreal demais. Perguntei pelo corpo de Davi e disseram que estava no IML.
Não dava para acreditar. As palavras deixaram de fazer sentido, eu só queria encostar em algum canto e apagar, esquecer tudo, mas não dava. Meu irmão voltou e, quando fui dispensado, insistiu para me levar para casa. Não aceitei e fiz com que me guiasse até o hospital, onde consegui aprovação para passar a noite ao lado de Daniela.
Foi uma luta até meu irmão aceitar e me deixar lá.
No silêncio do quarto, acariciei seu cabelo e imaginei como seria ao natural, ruivo. Fitei seu rosto pálido e machucado, o braço engessado, lembrando dela nua e enlameada embaixo de Davi, prestes a ser estuprada e morta. O terror me envolveu e lágrimas vieram aos meus olhos.
Apesar de tudo, da sensação de culpa, de saber que teria que conviver para sempre com o fato de ter matado Davi, eu senti também muita raiva dele. Pensei em Monalisa, tão doce, tão sofrida, com tanta esperança no futuro. O modo como ficamos apaixonados. Sua risada, sua entrega. E sua vida interrompida de modo tão bruto. Por Davi. Que faria o mesmo com Daniela.
Pensei em suas palavras, sua obsessão por mim. Apesar de uma vez ou outra notar um olhar esquisito nele, ter uma sensação estranha, nunca maldei nada assim. Era apenas uma pessoa comum, com defeitos e qualidades. Nunca imaginei que fosse doente a ponto de matar. De sentir prazer com isso. Um animal irracional, como ele mesmo dissera.
Destruíra vidas e famílias. Dava para ver o sofrimento em cada traço de Margarida, há doze anos buscando saber o que aconteceu com a filha. Como os pais das outras pessoas desaparecidas deviam sofrer. Como eu e meus familiares sofríamos.
Não aguentava mais pensar e recordar tudo que aconteceu naquele dia. Era pesado e dolorido demais.
Sentado na poltrona ao lado da cama, meu braço sobre o colchão, segurando a sua mão, pensei que não dormiria, mas a exaustão me venceu. E mergulhei no consolo do sono.
Continua amanhã
Autora : Nana Pauvolih
CAPÍTULO 38
GABRIEL CAMPANARI
Eu dirigi como um louco. Desrespeitei todas as possíveis leis de trânsito, minha cabeça a mil, pensamentos desconexos e perturbadores me deixando mais nervoso do que fiquei na vida. Segui o carro de Davi pelo rastreador, vendo-o em Conservatória e a caminho do lago em Valença, onde fomos pescar algumas vezes quando novos. Não queria acreditar, mas meu pânico era real demais. Assim como o medo por Daniela.
Tentei ligar para ela e para ele. Nenhum dos dois atendia. E então, de repente, meu celular começou a tocar. Era um número desconhecido, mas atendi na hora.
— Salve a Daniela! – Uma voz de mulher berrou. – Ele a está matando, perto do lago!
— O quê? – Acelerei ainda mais, virando na rua que levava até lá, o desespero me invadindo. – Quem é?
— Amiga dela! Gabriel, eu vi e ouvi! Pela câmera dela! Mas agora ele a tirou do carro e a arrastou para fora! Ai, meu Deus! Diga que está perto! A polícia não quer acreditar em mim!
— Estou perto. – Arfei, muito nervoso, correndo muito. – É o Davi?
— É ele! É um assassino!
Fiquei gelado, como se tomasse uma surra, mil agulhadas percorrendo meu corpo. Apesar da desconfiança, tinha rezado para estar enganado. Agora a realidade vinha pior do que tudo. A senhora continuou a chorar e gritar:
— Dani levou uma arma, mas ele a derrubou no chão do carro e bateu nela! Ai... – Chorava copiosamente. – Eu não devia ter deixado a Dani ir...
— Estou chegando. Vi o carro dele. – Parei meu carro ao lado. Coração acelerado, pânico me consumindo. Pulei para fora, indo direto ao carro de Davi, buscando a arma.
— Acho que a levou para o lago! Rápido! Pelo amor de Deus!
Engatilhei a arma, guardei o celular no bolso e, em meio à chuva e à lama, corri entre as árvores até à beira da água, desesperado, respiração descontrolada, terror, medo, desespero, raiva, tudo lutando dentro de mim. Rezei a Deus para não chegar tarde demais. O pavor me engolfava e movia. Minhas pernas iam mais rápido que tudo. E então eu os vi e parei, estarrecido com a cena.
Daniela nua de bruços na beira do lago, de frente para mim, cheia de lama e sangue no rosto, seus olhos arregalados, sem poder acreditar que me via. Montado atrás dela, segurando-a pela garganta com uma das mãos e um canivete com outra, Davi se esfregava nela e dizia algo em seu ouvido, como um maldito sádico, louco, diabólico. Estacou ao dar comigo e empalideceu, paralisado, olhos imobilizados pela surpresa.
O tempo parou. Até meu coração falhou. Era surreal. Parecia uma cena de filme de terror, de algo inacreditável, fora da realidade. Mas a cena era bem real, assim como o meu pânico, a minha raiva e aquele medo voraz, que quase me prostrou.
Daniela mal respirava. Davi estava em choque e piscou, tentando afastar minha visão da sua frente. Fui o primeiro a me recuperar e ergui a arma engatilhada, apontando direto para ele. Isso o alertou.
— Solte-a. – Falei baixo. Por dentro eu tremia, sangrava, chorava. Mas minha mão estava firme no gatilho.
— Ou o quê? – Davi não se moveu, muito sério. – Vai me matar?
Ele era uma das pessoas mais importantes da minha vida. Como eu poderia matá-lo? Como num flash, vi imagens nossas do passado, quando ainda éramos garotos e jogávamos bola, corríamos atrás de pipa, ríamos juntos. Davi mais velho, sempre rindo, sempre ao meu lado. Vacilei por dentro, sem acreditar que aquilo estava acontecendo.
Então fitei Daniela, nua e machucada, com sangue e lama no corpo, prostrada embaixo dele como um animal prestes a ser abatido. Olhei a lâmina em seu pescoço, marcando sua pele, e senti um medo atroz de que a matasse. Como fizera com Monalisa.
— Se for preciso, eu mato, Davi. Agora, solte-a. – Falei frio, quando por dentro eu fervia.
Davi suspirou, mas não se moveu. Seus olhos me avaliaram, sem aquela alegria que lhe era tão peculiar. Estava sério como um estranho. O estranho que fizera parte da minha vida, mas que não enxerguei.
— Eu não posso, Alemão. Fui longe demais.
— Pare com isso. Você precisa de ajuda. Vamos, Davi.
— Ajuda? Acho que sou louco? – Franziu o cenho, atento a mim.
Eu fitava a navalha, com medo que cortasse Daniela. Evitava os olhos dela para não me distrair. Encarei meu amigo.
— Por que fez isso? – Mal conseguia respirar, a dor violenta me corroendo por dentro. – Por quê, Davi?
— Sou assim. Aprendi que sou assim desde muito cedo, cara. Um animal faminto. Não sei, tive muito tempo para analisar, mas acho que simplesmente é isso. Um fato.
— E o Davi que conheci a vida inteira? Foi uma mentira? – A arma continuava firme em minha mão.
— Não. Sou eu também. A Luz, Gabriel. A luz que se tornou mais forte em mim depois que te conheci. Precisa entender. Eu seria um nada, uma sombra eterna, só um animal. Mas você me salvou, amigo. Eu quase consegui. Juro que tentei! Lutei contra essa fome, mas ela sempre vem. – Apertou Daniela mais forte, erguendo mais sua cabeça, deixando-me apavorado, nervoso, sem ar, preparado para tudo. Mas parou, respirando fundo, seus olhos negros brilhando muito. – Você se tornou o que eu queria ser. O filho amado. O garoto generoso. O menino estudioso e responsável. Aquele que todos admiravam, que todas as garotas queriam. Imitei você. E te amei tanto, cara, mas tanto, que se tornou meu modelo de perfeição! Mas nasci com essa falha. E aprendi a conviver com ela.
Eu estava chocado, abalado, sem acreditar em tudo aquilo. Davi balançou a cabeça, parecendo cansado.
— Não se sinta culpado, não falhou comigo. Eu é que falhei. Não fui sempre como você queria. Não consegui!
— Nunca quis nada, Davi. Só fui seu amigo, seu irmão. Nunca exigi nada de você.
— Sei que não. Mas eu queria ser perfeito. Para que me amasse sempre, mais do que tudo. Mesmo sabendo que por dentro eu era mais do que você imaginava. Só que aquela mulher... A irmã dessa maldita...
Parecia que ia cortar o pescoço de Daniela, cheio de ódio.
Gritei, fora de mim, dando um passo à frente:
— Para com isso, porra! Vou atirar!
Ele parou, mas não a soltou. Fitou meus olhos.
— A que ponto nós chegamos, amigo. Era isso que eu queria evitar. Ia tirar essa mulher da nossa vida e tudo voltaria ao normal, como devia ser. Não era para você estar aqui.
— Por isso matou Monalisa? Para tirá-la da nossa vida?
– Da sua vida. Ela ia tomar você de mim.
Suas palavras me deixaram gelado, sem poder acreditar. Não podia ser aquilo. Mas acenou com a cabeça.
— É isso. Você e eu, Gabriel. Como sempre foi. — Sempre fomos amigos, irmãos. Nada mais que isso.
— Muito mais que isso! – Gritou.
Fitei os olhos de Daniela, cheios de medo, de raiva e de pena. Fixos em mim. O que eu sentia por ela me deu forças de continuar. Não importava o que acontecesse ali, eu não o deixaria matá-la.
— Isso é obsessão. – Falei baixo.
— É, acho que é. Mas chega de lutar. E agora, cá estamos nós. – Sorriu lentamente, como o Davi que conheci a vida inteira. Sua mão amparou melhor o pescoço de Daniela e ajeitou o canivete, firme. – O que você decide?
— Não preciso decidir nada. Estou esperando soltar Daniela. — E o que mais? Ir direto para a prisão? Um hospício?
— Um lugar onde possa receber ajuda. Prometo não abandonar você.
— Vou ficar preso como um animal, enjaulado. E você com essa puta! – Cuspiu as palavras, furioso. – Nunca! Pense bem, Gabriel. A escolha está em suas mãos. Se não apertar esse gatilho, eu sumo com ela. Ninguém vai saber ou ter provas. Vamos voltar à nossa vida, irmão, como sempre foi. Se apertar esse gatilho, prefere ela. É até simples.
— Pare com isso. – Dei mais um passo à frente, a chuva fina molhando meu rosto.
— Vou contar até três. E então a corto. Decida.
— Cale a boca e a solte, porra! Agora!
— Um.
— Davi, estou falando sério! – A lágrima escorreu do meu olho, incontrolável, o pavor me deixando gelado. – Para!
— Dois. – Sorriu e chamas pareceram brilhar em seus olhos. Senti que ia atacar.
Abriu os lábios e atirei.
Foi como em câmera lenta. Os olhos de Daniela arregalados, cheios de pânico. O tiro cravando-se na testa dele. Sua mão largando o canivete, mas antes cortando-a, o sangue surgindo. O corpo de Davi sendo arremessado para trás.
Gritei e corri. Fui envolvido por sentimentos horríveis, desesperadores, como se um inferno viesse dentro de mim. Sabia que o tinha matado. Matei meu melhor amigo, meu irmão, meu companheiro. Mas não corri para ele.
Caí ajoelhado no chão ao lado de Daniela e a puxei para os braços, completamente fora de mim, com medo de vê-la morta também. Mas me olhou, viva, assustada, sangue descendo do pescoço.
— Ah, meu Deus... – Arranquei minha camisa, deitei-a em minhas pernas, pressionei contra o ferimento.
— Foi... arranhão... – Conseguiu murmurar rouca, a voz falhando, vendo meu desespero. Afastei a camisa e o alívio me engolfou ao ver que era só um arranhão na pele, sem profundidade.
Abracei-a forte, enfiando meu rosto entre seus cabelos molhados e enlameados, sentindo o pranto me varrer, me fazer soluçar.
— Cal...ma ... – Daniela tentou me tocar.
Olhei para a beira do lago e o vi ali, no raso, olhos abertos para o céu. A dor me rasgou. E eu não pude me controlar.
CAPÍTULO 39
GABRIEL CAMPANARI
Foi difícil enfrentar a realidade, reagir. Eu queria rebobinar o tempo, acordar, perceber que nada era real. Mas a chuva continuava apunhalando, o corpo nu e ferido de Daniela tremia, Davi estava ali, morto. Engoli o pranto, sem poder olhar de novo para ele, ainda sem acreditar naquele inferno. Quando ela entrou em choque, controlei minha dor e reagi.
Envolvi minha camisa em volta de seu corpo e levantei com ela em meu colo, amparando-a contra o peito. A imagem de Davi morto, com um furo na testa e um filete de sangue escorrendo enchia minha mente e me deixava tonto.
Pensei que não aguentaria. Vi seu sorriso de toda uma vida e mais uma vez não pude acreditar em tudo que acabara de acontecer, em quem ele era.
Olhei para frente e dei um passo. Mais outro. Até deixar aquilo para trás e seguir, com Daniela nos braços, sacudida pelos tremores violentos. Talvez eu nunca me recuperasse. Ou talvez o tempo se encarregasse daquilo. Eu não sabia. Só sabia que ela precisava de mim.
Depositei-a no carro, molhada e tremendo, machucada, cheia de lama. Minha camisa era pouca para cobri-la, mas eu não tinha nada mais. Não pus o cinto. Puxei-a para perto de mim, para aquecê-la um pouco, enquanto pegava o celular. A amiga dela continuava na linha e falei imediatamente:
— Daniela está bem. Estou levando-a para casa.
— Ai, meu Deus... – A mulher começou a chorar. – Jura? Você jura?
— Sim, está com a garganta machucada, não pode falar, mas... vai ficar bem.
Ela gritou aliviada coisas que não compreendi. Depois que desliguei, olhei para o carro de Davi, ao lado do meu. Uma tristeza horrível me envolveu. A dor era abissal, sem fundo, contorcida. Respirei fundo, lembrando de seu corpo ao lado do rio. Tinha que avisar as autoridades, ligar para meu pai e irmão, contar à minha família. Mas primeiro cuidaria de Daniela. Liguei o carro e o pus na estrada.
Foi uma viagem sofrida e silenciosa. Tremia e gemia, meio acordada, meio em choque. Mas só de ouvi-la respirar, de saber que por pouco eu a perdia, consegui me controlar. Chegamos em frente ao hospital e saí com ela no colo, cobrindo-a ao máximo com a camisa. Estava muito quieta, mole.
Trouxeram maca e a levaram para dentro, enquanto eu caminhava ao lado e explicava mais ou menos o que tinha acontecido.
— Vamos ligar para a polícia. Fique aqui, cuidaremos dela. – O médico afastou-se, com um enfermeiro empurrando sua maca. Parecia adormecida.
Respirei fundo e fui até a recepção. Enquanto esperava a polícia chegar, andei até um canto, molhado, sem camisa, arrasado. Liguei primeiro para meu irmão mais velho, Rômulo. Disse a ele que estava no hospital com uma amiga, que passava bem. Mas que precisaria dele ali. Pedi que trouxesse meu pai. Ficou nervoso, mas preferi não contar aquela coisa horrível por telefone.
Sentei em uma cadeira de canto e fiquei lá, terrivelmente ferido, sangrando por dentro. Dois policiais chegaram e ali mesmo contei tudo. Na mesma hora entraram em contato com a delegacia e informaram o ocorrido. Pegaram meus dados, fizeram anotações, disseram que estavam partindo para lá em busca do corpo de Davi. Expliquei que a arma ficou lá, no chão.
Eles saíam quando meu pai e meu irmão entraram nervosos, vindos do sítio. Correram para mim. Com muito sacrifício, consegui me levantar. Perguntaram o que tinha acontecido. Meu irmão me amparou quando cambaleei, um pouco tonto. E me ajudou a sentar de novo.
Com o peito doendo e a garganta travada, contei tudo. Vi o horror, o pânico, a raiva e a dor no rosto deles. Meu pai chorou copiosamente, sem poder acreditar. Rômulo balançava a cabeça, furioso, quase explodindo.
— Eu sempre soube que havia algo errado com ele, que não era quem mostrava. Não sei como não me matou, sabendo que eu desconfiava.
— Por que você era meu irmão. — Murmurei, arrasado, com lágrimas nos olhos, enquanto meu pai me abraçava. Era como perder um filho também.
Ficava uma sensação de impotência, além da dor, pois, como não vimos o que Davi fazia? Como convivemos tantos anos com um assassino no meio da nossa família? Mesmo com as rusgas entre ele e Rômulo, não passou por nossa cabeça que fosse um louco psicopata. Nem meu irmão chegara a cogitar algo tão grave. Samara cresceu adorando-o. E ele nunca fez nada além de mimá-la, enchê-la de carinho e de presentes. Adorá-la.
Permaneceram ao meu lado até eu ser informado que Daniela tinha sido lavada, medicada e que dormia profundamente. Só acordaria no dia seguinte. Estava com o braço direito quebrado e uma costela rachada, além dos machucados. Mas se recuperaria. Ao menos fisicamente.
Tínhamos que contar à minha mãe e à Samara tudo que acontecera. Eu sentia frio e estava muito mal, minha cabeça explodindo. Mas me recusei a sair do hospital. Rômulo me garantiu que era só para tomar um banho, pôr uma roupa e voltar. Minha mãe também só sossegaria se me visse bem. E assim concordei.
Foi horrível em casa. Elas não quiseram aceitar. Parecia um pesadelo, uma mentira. Mas viram meu estado e choraram, lamentaram, mas me agarraram, garantindo que não tinha culpa, que não poderia ter deixado Davi matar mais uma pessoa inocente. Eu sabia disso. Mas a dor permanecia.
Depois de um banho e roupa seca, quiseram me alimentar, me convencer a ficar. Mas eu estava irredutível. Não conseguia parar de tremer e de pensar em Davi morto naquele lago, mesmo quando nos informaram que o corpo havia sido removido. Eu nunca esqueceria aquela cena. E só ficar perto de Daniela, vê-la bem, poderia me trazer algum conforto. Rômulo me levou ao hospital e no carro dele, liguei de novo para a amiga de Daniela.
— Quero muito ir ao hospital ver a Dani! – Disse desesperada, chorando. – Mas sou cadeirante! E não tem nenhum vizinho de carro que possa me levar. Estou há uma hora no ponto de ônibus!
— Estou passando aí com meu irmão para pegar a senhora.
— Obrigada. — Deu o endereço.
Paramos com o carro em frente ao ponto de ônibus e vi a senhora magra, cheia de rugas, com os olhos vermelhos de tanto chorar. Ela me fitou, meio perdida, e segurou minha mão.
— Obrigada. Por salvar a Daniela.
Não consegui dizer nada. Tudo em mim gritava, parecia prestes a desabar. Uma parte se mantinha meio anestesiada, a outra berrava de dor. Eu precisava me manter em movimento, não podia parar, pensar muito.
Falou que ia para o carro sozinha, mas a ajudei e a depositei no banco da frente, deixando a cadeira no porta-malas. Sentei atrás e Rômulo pôs o carro em movimento. Ficamos em um silêncio pesado e ocasionalmente meu irmão me lançava olhares de pena pelo retrovisor. Não falou mais de Davi, sabendo bem o que ele havia sido para mim, entendendo meu sofrimento. A senhora se virou um pouco para me olhar.
— Pode me contar tudo o que aconteceu, Gabriel?
Eu não aguentava nem pensar em tudo aquilo, quanto mais falar. Mas vi seu nervosismo, sua apreensão e só consegui murmurar:
— Ele está morto.
Ela moveu a cabeça, como se entendesse que era por minha culpa. Sua voz vacilou, emocionada:
— Sei o quanto está sendo difícil para vocês, mas ele era um monstro. Matou minha única filha. Talvez se lembre dela.
— Quem? — As coisas só pioravam.
— Fabiana. Estudou na mesma escola que você. Foi dada como desaparecida há doze anos.
— Eu me lembro. – E lembrava mesmo. Tinha até dado uns beijos nela. Na época só se falava do seu desaparecimento. Fiquei chocado por ter sido vítima do Davi. – Não imaginei algo assim.
— Ninguém nunca acreditou em mim. Eu sabia que estava morta e a polícia não fez nada. Por anos fui na delegacia, cobrei, exigi. Agora, com a morte do rapaz e os corpos que apareceram, voltei lá, falei com o delegado e ninguém quis me ouvir. Achavam que eu era louca. – Parou e respirou fundo. – E quando Davi pegou a Daniela e liguei para a polícia, nem ligaram. Se não fosse você, ela morreria.
Minha cabeça explodia. Olhei pela janela, exausto, doído. Sabia que não tive opção. Fiz a única escolha possível e tê-la viva me alentava. Mas ainda buscava outra solução para não ter matado Davi. Eu sentia que estava por um fio, que aquela realidade me derrubaria em algum momento.
— Mas sua filha nunca foi encontrada? — Perguntou Rômulo.
— Nunca. Talvez agora... Quem sabe. Dani investigava vocês e pôs uma câmera na casa de Davi. Vimos que ele tinha uma espécie de diário em seu cofre. Talvez lá possamos encontrar mais respostas.
Eu me virei para ela, a voz baixa:
— Filmaram minha casa também?
— Não. – Fitou meus olhos. – Cobrei muito isso de Dani e ela inventava desculpas. Acho que estava apaixonada por você.
Fiquei quieto, pensando em tudo que Margarida disse, um cansaço enorme pesando em meus ombros.
Quando chegamos ao hospital, deixaram que víssemos Daniela, mas os medicamentos a faziam dormir direto. Margarida chorou e beijou sua mão esquerda, pois a direita estava engessada. Rômulo ficou quieto, mais para me dar apoio. E eu apenas a olhei, pensando o quanto estive perto de perdê-la.
Saímos do quarto e dois policiais estavam lá, me aguardando para me acompanhar até a delegacia e prestar um depoimento formal. Pedi que Rômulo levasse Margarida em casa e ele concordou, garantindo que voltaria para me encontrar na delegacia. Antes que saíssemos, a senhora me puxou por um abraço e murmurou:
— Obrigada. Que Deus o proteja sempre. – Fitou meus olhos, quando me ergui. – Você não teve culpa de nada, Gabriel. Nenhuma.
— Eu sei.
Na delegacia tudo foi estranho, como em câmera lenta. Repeti todo o ocorrido, sentindo um frio que vinha dos ossos, como se tudo fosse irreal demais. Perguntei pelo corpo de Davi e disseram que estava no IML.
Não dava para acreditar. As palavras deixaram de fazer sentido, eu só queria encostar em algum canto e apagar, esquecer tudo, mas não dava. Meu irmão voltou e, quando fui dispensado, insistiu para me levar para casa. Não aceitei e fiz com que me guiasse até o hospital, onde consegui aprovação para passar a noite ao lado de Daniela.
Foi uma luta até meu irmão aceitar e me deixar lá.
No silêncio do quarto, acariciei seu cabelo e imaginei como seria ao natural, ruivo. Fitei seu rosto pálido e machucado, o braço engessado, lembrando dela nua e enlameada embaixo de Davi, prestes a ser estuprada e morta. O terror me envolveu e lágrimas vieram aos meus olhos.
Apesar de tudo, da sensação de culpa, de saber que teria que conviver para sempre com o fato de ter matado Davi, eu senti também muita raiva dele. Pensei em Monalisa, tão doce, tão sofrida, com tanta esperança no futuro. O modo como ficamos apaixonados. Sua risada, sua entrega. E sua vida interrompida de modo tão bruto. Por Davi. Que faria o mesmo com Daniela.
Pensei em suas palavras, sua obsessão por mim. Apesar de uma vez ou outra notar um olhar esquisito nele, ter uma sensação estranha, nunca maldei nada assim. Era apenas uma pessoa comum, com defeitos e qualidades. Nunca imaginei que fosse doente a ponto de matar. De sentir prazer com isso. Um animal irracional, como ele mesmo dissera.
Destruíra vidas e famílias. Dava para ver o sofrimento em cada traço de Margarida, há doze anos buscando saber o que aconteceu com a filha. Como os pais das outras pessoas desaparecidas deviam sofrer. Como eu e meus familiares sofríamos.
Não aguentava mais pensar e recordar tudo que aconteceu naquele dia. Era pesado e dolorido demais.
Sentado na poltrona ao lado da cama, meu braço sobre o colchão, segurando a sua mão, pensei que não dormiria, mas a exaustão me venceu. E mergulhei no consolo do sono.
Continua amanhã
Jurava que seria o Gabriel e foi Davi...
ResponderExcluirNossa q tristeza ver ele sofrendo assim
ResponderExcluirUau
ResponderExcluirNossa, será que Gabriel vai superar essa dor.
ResponderExcluirEu tinha certeza que era o Rômulo, que Mérida hein pelo menos não foi o Gabriel😋.
ResponderExcluirera davi...nossa ....Acho que teremos um final feliz...
ResponderExcluirEu tinha certeza de que era o Rômulo! Que reviravolta!!!
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