Conto Erótico - A Sombra da Luz - Capítulos 35, 36 e 37
🔥✨A SOMBRA DA LUZ 🔥✨
Autota : Nana Pauvolih
CAPÍTULO 35
A SOMBRA
Meu carro estava atrás do posto de gasolina, oculto. O dia estava perfeito para o que eu queria, chuvoso, frio, mantendo muita gente fora das ruas. Atrasei de propósito e depois a vi sob a marquise do ponto de ônibus, sozinha. Quando percebi que não havia testemunhas, pus o automóvel em movimento e dirigi devagar até ela, sem conseguir desgrudar os olhos de sua figura.
Emoções intensas borbulharam no meu peito, enquanto Daniela olhava para meu carro, certamente o reconhecendo. De alguma forma aquilo me exaltou, sua expressão rígida, sua palidez. O que estaria pensando? Sentindo? Em algum momento teria certeza de que era eu ou estava surpresa? Precisei acalmar a euforia, conter o ânimo para a hora certa. Mas não perderia nada até tudo se concretizar.
Parei o carro com vidro fumê em frente a ela. Baixei o vidro e nossos olhares se encontraram. Sorri, pois não pude conter o prazer abissal que se espalhou dentro de mim. Ela me via por completo, sem disfarces, na minha essência. O fato de ser a única a ter aquele privilégio antes do ataque me encheu de júbilo.
Ficou imóvel, os cabelos presos em um rabo de cavalo, tão branca quanto um fantasma. Agarrava-se ao casaco e à bolsa, obviamente tremendo. Sem uma palavra, abri a porta e esperei. Não tinha ainda prova nenhuma contra mim. E isso me tranquilizou.
Por um momento achei que sairia correndo. Seria um desperdício, me deixaria furioso. Claro que eu teria que abatê-la de qualquer jeito, um tiro e pronto. Mas e o prazer? Nunca a perdoaria por me privar de cada momento até o fim.
Ela se moveu e a excitação veio com tudo. Aproximou-se e, sem tirar os olhos dos meus, se sentou. Tudo ali dentro crepitou quando a porta bateu e nos isolou do mundo lá fora. Travei automaticamente cada saída e meu sorriso se ampliou, enquanto eu murmurava:
— Sempre soube que era corajosa.
Observei-a totalmente concentrada em mim, tão linda e jovem em seu rabo de cavalo, sua bolsa no colo, os olhos esverdeados, sérios, cheios de algo que brilhava ferozmente. Ira. Aquilo foi como atear combustível em fogo. Pus o carro em movimento, totalmente dono de mim. Mas mesmo assim sondei em volta, para ver se estávamos sendo seguidos. Relaxei.
— Obrigado por ter vindo. Por um instante achei que declinaria o convite.
— A curiosidade foi maior. Para onde estamos indo?
— Para algum lugar onde possamos conversar em paz.
— O lugar onde enterra as suas vítimas? Perto do rio?
— O rio é grande. — Dei uma risada. — Não se preocupe, não é onde os corpos foram achados. Seria arriscado demais. Digamos que vamos dar um passeio e ter uma longa conversa, Pequerrucha.
Falar seu apelido a sacudiu e soltou o ar, inflamando, com vontade de me atacar. Mantive-me alerta, mas sem me preocupar muito. Eu era muito mais do que ela podia imaginar. Fui direto ao ponto:
— Como soube de mim? Como desconfiou da gente?
— Monalisa ligou para mim quando estava sendo perseguida por você.
Aquilo me surpreendeu de verdade e apertei o volante. Nunca imaginei que Monalisa tivesse ligado para alguém antes de morrer. O pânico me envolveu sem que eu esperasse, pois significava que Daniela tinha muito mais informações do que eu imaginava.
Desconfiei que estava caindo em uma armadilha e olhei de novo pelo retrovisor, mas a rua estava vazia. Ainda assim me mantive alerta, pesando as opções e riscos.
— Não sabia de mim. Ela não disse nomes. Você que chegou a essas conclusões.
Daniela não negou. E eu soube que estava certo. Arrisquei bem quando a convidei até ali, contando com sua ignorância e suas dúvidas sobre a minha identidade, ansiosa demais para me pegar. Eu só precisava descobrir em que Daniela se garantia para estar ali.
Lancei um olhar rápido a ela, virando o carro em uma rua deserta, que mais à frente daria em outra, me embrenhando até o local em que visitei muito em minha infância e adolescência.
Senti o prazer esfomeado crescendo dentro de mim. Fitei seus olhos, aquele cabelo que ficaria ainda mais lindo ruivo, a pele branca, o pescoço esguio. Desejo quente e voraz mesclou-se à fúria que fervia em meu interior. Eu brincaria bastante com ela. Mas antes precisava ter certeza de que estava seguro.
— Estou curioso agora. Como pensa em resolver nossa situação?
— Já peguei você.
Meu coração bateu forte. Adrenalina se espalhou em minhas veias. Olhei-a e vi o medo no fundo de seus olhos, assim como a raiva avassaladora. Alguma carta tinha na manga, mas o risco foi um tempero a mais e fiquei ansioso para começar. Sorri, duvidando que pudesse fazer aquilo, uma sensação de poder ilimitado já tomando conta do meu ser. Daniela era um perigo e um desafio. Muito maior que os outros.
— Matou minha irmã por ciúmes dela. Mas agora vai pagar por isso.
— Lamento informar que não vai ser assim. Você está certa em muitas coisas. Mas errou feio duas.
Ela empalideceu, segurou a bolsa com força, manteve-se dura e rígida no banco. Seus olhos estavam bem abertos, acho que nem respirava. Mas indagou num fio de voz:
— O quê?
Vi as árvores mais à frente, se fechando, tornando nosso recanto secreto. Comecei a parar o carro.
— Não foi por ciúme de Monalisa. Foi para tirá-la da vida dele. Ela estragaria tudo. E a segunda coisa, já percebeu, não é? Logo vai encontrar a sua irmã.
Foi delicioso ver sua expressão e palidez. Gozei aquele momento como único e me enchi de felicidade. Daniela estava isolada no carro comigo, em um lugar deserto. Blefando. Ali, onde comecei a me conhecer levando os animais. Ali, onde me livrei pela primeira vez de um infeliz. E onde seria seu derradeiro fim.
— Vai pagar caro por ter se metido no meu caminho, Dani. E por ter se metido no caminho dele.
E então, voraz, avancei para ela.
CAPÍTULO 36
GABRIEL CAMPANARI
Depois que terminei de falar com minha mãe ao telefone, senti algo horrível apertar meu coração, um pressentimento muito ruim, que chegou a me deixar sem ar. Desesperado, me preocupei com minha família, mas foi Daniela que veio com tudo na minha cabeça. Tive certeza que algo nefasto ia acontecer e o sonho com Monalisa veio mais vívido do que nunca em minha mente. “Salve a minha irmã”. Por algum motivo, soube que ela estava correndo perigo.
O medo atroz me fez tentar falar com Daniela ao telefone inúmeras vezes, sem sucesso, até ser dominado pelo desespero. Desconfiei que ela tivesse ido para Conservatória ou Valença, devia ter sabido dos corpos. Resolvi partir para lá o quanto antes, mas para confirmar recorri a um conhecido especialista em comunicações, informática e satélites. Procurei seu telefone na agenda e liguei para ele às pressas.
Expliquei que sabia que o que ia pedir não era legal, mas que ele tinha meios de descobrir. Ofereci uma grana irrecusável, se localizasse o telefone de Daniela. Passei todos os dados que pediu e ele me disse que retornaria o telefonema tão logo tivesse uma resposta.
Fiquei nervoso, ansioso, sem conseguir me concentrar mais em nada. Saí, decidindo me dirigir para onde o instinto mandava, enquanto não vinha a certeza. Já estava na rua, indo para Valença, quando meu conhecido ligou de volta. Atendi logo, com o coração disparado.
— Ela fala de Conservatória. – Ele disse logo.
— Entendi. Hoje mesmo transfiro o dinheiro para sua conta, Josué. Obrigado.
— De nada, Gabriel. Sempre estou às ordens.
Pelo menos eu estava no caminho certo, mas ainda mais preocupado. Liguei para minha mãe.
— Gabriel!
— Mãe, quando o rapaz foi assassinado?
— O rapaz? O corpo que acharam?
— Sim. — Não sei, acho... — Parecia confusa.
— Se não me engano sumiu na semana retrasada.
— Quando?
— No sábado em que você e Davi estiveram aqui. Sim, foi isso mesmo. Por quê?
— Nada.
— Gabriel...
— Depois ligo. Tenho que fazer uma coisa agora.
— Mas...
— Está tudo bem. Beijos.
Desliguei e senti um baque, como um soco no estômago. Não, não podia ser. Com certeza tinha outra explicação. Liguei para o celular de Davi e não atendeu. Então tentei no escritório.
— Cláudia, onde está Davi?
— Ele saiu. Tem uns trinta ou quarenta minutos.
— Disse aonde ia?
— Não. Quer que eu faça alguma coisa?
— Não. — Desliguei, acelerando.
Eu não podia estar pensando aquilo. Era loucura.
Claro que Davi não tinha nada a ver com aqueles assassinatos. Mas Daniela nos investigava, desconfiava de um de nós dois. Os corpos foram encontrados e ela partira para o local, como se tivesse relação com Monalisa. O rapaz tinha sido assassinado no final de semana que fomos em Conservatória. Monalisa tinha pedido que eu salvasse sua irmã. Contei para Davi que elas eram irmãs. Davi tinha sumido.
O ar me faltou, mas tratei de me acalmar, sabendo que era apenas uma crise de pânico. Então tive uma ideia e liguei o rastreador por satélite. Por medo de roubo e sequestro, tanto eu quanto Davi tínhamos contratado uma firma que rastreava nossos automóveis e um podia ver para onde seguia o carro do outro. Digitei os códigos no aparelho e consegui rastrear o carro do meu amigo. O choque me engolfou ao ver que ele quase chegava em Conservatória.
Fiquei duro, gelado, uma dor atroz a me apunhalar.
— Não... – Murmurei dentro do carro. Tinha que haver outra explicação. Talvez estivesse tão preocupado com Daniela quanto eu, soubesse de algo mais. E estivesse indo ajudá-la.
Acelerei, cheio de indagações e medos, sem poder atinar que a realidade fosse tão chocante. E então relembrei do sonho, dias antes, na noite em que nós três começamos a transar e eu não pude continuar, cheio de ciúmes, me dando conta de que a queria só para mim. Na mesma noite em que Rômulo havia ficado espiando a gente.
Depois que Davi saiu com Daniela, discuti com meu irmão e ele encheu minha cabeça com aquela velha ladainha de que não confiava em Davi. Fui para meu quarto, tomei um banho e caí na cama, perturbado, agoniado, nervoso. Com raiva.
Desde o primeiro momento, soube que ela mudaria algo em minha vida. Seria importante. Voltei daquele fim de semana em Ilha Grande certo de uma coisa: estava apaixonado por ela. Cheguei a ter certeza de que sentiu algo especial também. Tinha sido um banho de água fria perceber que para Daniela era apenas sexo, que queria não apenas comigo, mas com Davi também.
Lutei para provar a mim mesmo que era mesmo só sexo. Eu a foderia como a uma qualquer. Mas descobri mais duas coisas: não era possível separar meus sentimentos do meu corpo naquele caso. E não queria vê-la trepando com meu amigo. Não do jeito que eu me sentia.
Eu me enganei feio naquela história. O que pensei que fosse recíproco, tinha sido só do meu lado. E decidi cair fora para não me envolver mais e sofrer.
Rolei na cama, perturbado, perdido. E só muito depois, consegui dormir.
Era uma praia. Deserta. Chovia muito, em cântaros. Eu andava pisando descalço na areia molhada. Reconheci o lugar. Grumari. Uma sensação ruim me golpeou, de tristeza e desespero e lembrei de outro dia, quando soube o que aconteceu e corri para lá. Quando vi o corpo de Monalisa jogado em um canto perto de umas árvores e pedras, todo molhado de chuva, as marcas roxas no pescoço, os longos cabelos ruivos espalhados sobre a areia molhada. Os olhos imobilizados para sempre. Nunca poderia esquecer aquela dor que me rasgou por dentro. A sensação de impotência, o desejo de poder tê-la nos braços, fazê-la acordar enquanto me seguravam à força e não me deixavam chegar perto. O ódio pela maldade de tudo aquilo.
Eu estava ali de novo. Não queria estar. Nunca mais consegui pisar em Grumari desde aquele dia. Parei, olhando para o mar cinzento, querendo recordar como cheguei ali. Mas estava confuso demais para pensar. Virei-me disposto a ir embora. Foi quando a vi.
Estava parada, alta e esguia, a alguns passos de mim. Continuava jovem e linda. Os cabelos ruivos quase até a cintura. As sardas no nariz que eram um encanto. Tinha grandes e doces olhos castanhos, sempre doces como ela. Sorriu do jeito que sempre fazia. Eu costumava achar que seu sorriso para mim era diferente do que o que dava para outras pessoas. E acho que era. O meu era especial, com seu amor.
Saudade e dor me golpearam, assim como a esperança. Então era mentira? Ela estava viva? Dei um passo para frente, ansioso, emocionado, mas sua voz suave me deteve:
— Não. Não pode vir aqui, Gabriel.
Então me dei conta que não estava molhada. Mesmo em meio a toda aquela chuva, seus cabelos caíam secos e ondulados, seu vestido esvoaçava sem uma gota, a pele parecia quase translúcida. Quis falar, quis andar, quis fazer tanta coisa, mas me senti preso no lugar, imobilizado. A água descendo gelada por minha cabeça, me fazendo tremer de frio.
— Eu sei. – Ela sorriu, daquele jeito só meu, brilhando com seu amor. – Sei que sentiu minha falta. Também senti a sua.
— Mas o quê... — Consegui balbuciar.
— Não posso demorar, Gabriel. – Parecia então um pouco nervosa, até mesmo desesperada. – Precisa me ajudar. Salve a minha irmã. Por favor.
Não entendi. Quis me mover, tocá-la, fitar seus olhos de perto, mas não conseguia.
— Prometa que vai salvar minha irmã. Prometa. – Implorou. — A Pequerrucha. Ela corre perigo. Salve-a. Por favor.
Parecia sumir diante dos meus olhos, ficar cada vez mais translúcida.
— Monalisa! – Gritei desesperado. Algo me prendia, como se braços invisíveis estivessem à minha volta.
Acordei em meu quarto, sentando na cama com o coração disparado, a garganta seca, como se tivesse gritado muito. Olhei em volta confuso e só então me dei conta de que foi um sonho.
Passei a mão trêmula pelo cabelo, nervoso. Não foi apenas um sonho. Tinha sido real demais. Sua voz, seu cabelo, seus olhos e seu sorriso. Era Monalisa. E o que me pediu com tanta vontade, com todo seu ser, quase com desespero. Para salvar sua irmã.
Levantei da cama, ansioso. No decorrer da minha vida tive sonhos assim e alguns eu sabia ser um aviso, como da vez que implorei a meu pai para não ir trabalhar e aconteceu um acidente que matou alguns colegas seus do trabalho. Premonições, sensações, avisos.
Procurei me acalmar. Estava abalado, pois foi como ver Monalisa de verdade na minha frente, depois de seis anos sem pôr os olhos nela, vivendo apenas com as lembranças. Era uma sensação de dor e saudade, mas também de alívio. De saber que ainda existia. Nem que fosse dentro de mim ou em meus sonhos.
Fui até a janela e a abri, respirando o ar frio da noite, buscando me acalmar, analisar aquilo.
Ela já tinha me falado da irmã caçula. Eu sabia de sua história, de como fugiu do padrasto que a estuprou, da mãe que não acreditou nela, de sua preocupação com a irmã que chamava carinhosamente de Pequerrucha. Dizia que temia que o pai de sangue da menina fizesse com a filha o mesmo que fez com ela. Que queria trazê-la para morar em sua companhia. E que faria isso logo. Mas nem teve tempo.
Fiquei tão mergulhado em minha dor, após seu assassinato, que nem me lembrei mais da menina. A Pequerrucha, de quinze anos, tinha ficado esquecida, perdida para sempre em um passado longínquo. Por que agora Monalisa aparecia e me falava justamente dela? O que eu poderia fazer por uma garota que nem conhecia?
Garota não. Devia estar com vinte e quatro anos. Uma mulher. Tentei lembrar onde viveria, talvez ainda em Jaconé, de onde Monalisa viera. Perturbado, não vi coerência em tudo aquilo. Mas decidi investigar no dia seguinte.
Fiquei tão abalado pelo sonho que saí de casa mal o dia clareou e, depois de tanto tempo, voltei a Grumari. Foi ruim demais, me encheu de lembranças ruins. Naquele dia mesmo, mais tarde, encontrei Manolo. E descobri que a menina era Daniela.
Tudo fazia sentido. Ela corria risco. E eu não conseguia sequer imaginar que Davi tivesse algo a ver com aquilo. Era loucura! Com certeza ele tinha seus motivos para estar indo ao encontro de Daniela e a ajudaria.
Sem que pudesse conter, lembranças desfocadas e fora de ordem surgiram como espocadas na minha mente. Uma vez em que saímos juntos, ainda rapazes. Paquerei uma garota e me deu mole. Quando me aproximei, fui ver que tinha namorado e o cara me deu um soco. Davi perdeu a cabeça. Voou nele e o socou até deixá-lo desacordado. Só depois de muita luta consegui tirá-lo de cima do cara, antes que o matasse. Estava irreconhecível, uma fúria fria em seu rosto deixando seus olhos vidrados. Senti que o mataria e nem notaria.
Depois, quando seguia com Davi para casa, perguntei se estava louco, se queria parar na cadeia. E ainda estava esquisito, os olhos frios, a respiração pesada. Disse algo que me fez sentir mal, ter aquela impressão ruim e ao mesmo tempo inexplicável. Ele disse que, por mim, mataria.
Aquilo ficou guardado em algum ponto dentro de mim. Uma ou outra vez percebi aquele olhar em seu rosto, mas mudava logo, sumia. E sempre achei que era coisa da minha cabeça, pois era meu amigo, meu irmão, meu companheiro de uma vida inteira. Ser estourado, perder a cabeça de vez em quando não era pecado. E todo mundo tinha seus defeitos. De resto, eu confiava nele cegamente.
Senti-me revoltado ao pensar naquilo. E me concentrei em dirigir o mais rápido possível. Tentei ligar para ele várias vezes durante o percurso, mas não atendeu.
CAPÍTULO 37
DANIELA PRADO
O medo estava dentro de mim. Mas com ele veio algo como alívio, pois de uma coisa tive certeza: Gabriel não era aquele monstro.
Era estranho como em momentos de puro pânico e desespero, uma parte de nós se mantinha calma. Quando ele veio com tudo para cima de mim, seu rosto transformado em uma máscara mortal e animalesca, eu reagi, puxando a arma de dentro da bolsa.
Margarida com certeza estava vendo e ouvindo tudo, já sabia a identidade do assassino e nossa localização, enviava ajuda. Ainda assim gritei, para não restar dúvida:
— Vou te matar, Davi!
Não sei se demorei demais ou se ele tinha reflexos de um tigre, pois também reagiu na hora. Apertei várias vezes o gatilho, atirei para acertar sua cara, mas recebi uma cotovelada violenta no braço e os tiros se perderam dentro do carro. A arma bateu no porta luvas e foi para o chão. Gritei, pois parecia que tinha quebrado meu braço direito.
Um tiro trincou o para-brisa, outro, acertou Davi, pois o ouvi xingar e berrar:
— Sua puta, você atirou em mim!
Mas não tive tempo de olhar. Eu me abaixei, gemendo de dor, em busca da arma. Davi puxou meu rabo-de-cavalo violentamente, trazendo-me de volta ao banco e gritei, lutei, mas o braço doía horrores e eu mal podia movê-lo. Ele era forte demais. Golpeou meu rosto com as costas da mão e bati com a cabeça na porta, sangue saindo da minha boca e espirrando no vidro.
Fiquei tonta, com dor, latejando. O pânico veio quando me puxou de volta, suas duas mãos grandes se fechando em meu pescoço, apertando. Fitei seus olhos negros possuídos de chamas demoníacas e soube que ia morrer. Pensei em Margarida, vendo ou ouvindo tudo, seu desespero. Até conseguir ajuda, eu já estaria morta.
— Puta desgraçada, acha que pode contra mim? – Apertou com ódio e sufoquei. Tentei arranhá-lo, chutá-lo, mas meu braço direito estava mole e Davi se debruçava sobre mim no banco, não me dava opções de fuga.
Ao longe ouvi o telefone tocando, o celular dele. Parou um pouco, arfante, olhando em meus olhos.
— É o toque do Gabriel. – Murmurou. – Isso é por tentar tirar meu irmão de mim, puta!
Vou livrar o mundo de sua sujeira! E voltou a apertar. Tentei reagir, me debati, falei em arquejos roucos, quase sem voz:
— Vão... pegar ... você... Deixei provas...
— Ah, é? Como, se nem sabia que era eu? – Riu e me sacudiu, batendo com minha cabeça no vidro do carro de novo. Apertou tanto que me desesperei sem ar, cheia de dor e desespero, perdendo as forças.
Lágrimas desceram dos meus olhos e tive vontade de desistir. A imagem de Gabriel veio nítida em minha mente. Vi seus olhos azuis, me arrependi por não ter acreditado no sentimento profundo que despertava em mim e que fiz de tudo para não aceitar. Era tarde demais.
Tudo foi ficando escuro. Sabia que devia lutar até o final, mas me sentia muito cansada. Ouvi a voz de Davi ao longe, enquanto aliviava o aperto em meu pescoço e o ar passava ardente até meus pulmões:
— Não tão fácil assim, meu bem. Tenho planos melhores. Afinal, você merece. Você quase conseguiu. Quase. – E deu uma risada rouca, me largando mole no banco.
Senti-me fraca e tonta. Doía respirar, doía tentar pensar. Quando Davi me puxou para fora pelo braço direito, vi estrelas de tanta dor e caí no chão enlameado e cheio de folhas mortas ao lado da porta do carro, uma chuva fina e fria batendo sobre mim como agulhadas.
— Levante! – Ergueu-me da lama, mas minhas pernas pareciam gelatinas. Tentei falar, fugir, fazer algo, mas caí de novo no chão, de joelhos, a garganta pegando fogo, o braço doendo, a cabeça girando. – Pensei que fosse mais forte! Só isso?
Ele gritou com desprezo. Consegui erguer os olhos, firmar a visão nele de pé à minha frente. Parecia um gigante, grandalhão, moreno, furioso, molhado de chuva. Seus olhos eram frios como nunca vi, mas por dentro tinham fúria. Uma fúria assassina. Mostrou-me o braço esquerdo, de onde escorria sangue até a mão.
— Só um arranhão. Você não é de nada, Dani. Nem com uma arma na mão.
Pensei na arma, largada no chão do carro, junto com minha bolsa. Pelo menos Margarida não ia me ver, nem me ouvir morrendo. Mas estava gravando tudo. As provas estavam ali. Davi não sairia impune.
— Tá, não quer cooperar? Tudo bem. – Abaixou-se e agarrou um punhado do meu cabelo, que tinha se espalhado molhado. Puxou violentamente, arrastando-me deitada pelo chão cheio de lama, levando-me para perto das árvores. Quis gritar, mas minha garganta não permitiu, como se estivesse em brasa. Bati as pernas, agarrei seu pulso com a mão esquerda, mas continuou a me arrastar facilmente. – Prefiro seu cabelo ruivo, como de Monalisa. Agora entendo porque mantem a boceta raspadinha. Devia ser ruiva lá também. Como ela.
Sua voz era tranquila, até animada. O desgraçado se divertia. Gostava de fazer aquilo. Era um verdadeiro monstro em sua essência, que se escondia em uma aparência linda, sedutora, bem humorada. Entendi porque matou tantas pessoas. Era um predador natural, com um disfarce perfeito.
— Sempre fiquei impressionado com os pelos ruivos de Monalisa. Parecia ter fogo entre as pernas! Igual a irmã. Nos divertimos juntos, principalmente aquela vez com Gabriel. Nunca vou esquecer. – Continuou a me puxar entre as árvores. Folhas e sujeira vinham com lama para cima de mim. Pedrinhas arranhavam minha pele. O couro cabeludo ardia onde agarrava o cabelo com violência. Comecei a ficar mais forte, a me debater mais, no entanto, isso o fez rir. – Isso, Dani. Lute. Mostre que não é uma molenga! Estamos quase chegando. Ao paraíso, meu bem!
— Solte... – Consegui murmurar, rouca, a garganta como uma fornalha, o ódio violento dentro de mim.
Davi riu ainda mais.
A chuva nos banhava e então senti as árvores se espaçarem, o solo ficar mais macio e úmido, até que me soltou. Estava na beira do lago cercado pela mata. De pé, ao meu lado, Davi se abaixou, sua argola de ouro brilhando na orelha, seus olhos ardendo.
— Calma, minha bela. Vou te dar prazer. Vai morrer com meu pau bem enterrado na sua bocetinha. E a última coisa que vai ver, serão meus olhos.
Rasgou violentamente minha blusa, arrancando-a como um animal. Fechei os dedos em volta da terra molhada do lago e me preparei, o coração disparado, o pânico latejando em meu interior. Tentou tirar minha calça, mas o jeans estava molhado, pesado, com lama. Xingou e o puxou para baixo com força, junto com a calcinha, até que me deixou nua. Sorriu e veio para cima de mim. Foi quando joguei terra em seus olhos.
— Porra! – Berrou, levando as mãos ao rosto, erguendo-se momentaneamente cego.
Rolei para o lado, tentei levantar. Escorreguei, o braço machucado não serviu como apoio, mas a vontade de viver foi mais forte. Apoiei a mão esquerda no chão, tremendo, conseguindo me levantar e correr. Estava perdida, sem direção, mas me baseei pelas árvores. Se eu pudesse chegar ao carro, pegar a arma, escapar ...
Mas não fui muito longe. Davi agarrou meu cabelo e puxou. Deu um soco em minhas costas que tirou meu ar e me derrubou de bruços no chão. A dor foi violenta, dura, me deu ânsias.
— Filha de uma puta! – Berrou ensandecido. Agarrou minhas pernas, arrastou-me. Terra entrou em meu nariz e boca. Cuspi, sufoquei. Então me largou e senti minhas pernas mergulharem na água gelada do lago.
Montou em minha bunda, sentando sobre ela, agarrando meu cabelo pela nuca e puxando minha cabeça para trás. Eu tossi, engasguei, me enchi de medo. Davi então puxou um canivete do bolso e o encostou em meu pescoço, dizendo furioso perto do meu ouvido:
— Odeio sangue. Mas me deixou tão puto que quero te cortar inteira, como uma porca! Mais uma e abro seu pescoço!
Fiquei imóvel, sabendo que era o fim. Não havia como nem onde escapar. Meu corpo todo doía. Até respirar era difícil. E então ele largou meu cabelo, escorregou a mão livre até minha garganta e a fechou sobre ela. O canivete continuava ali, perto da jugular. Lentamente, moveu o quadril e senti seu pau duro roçar minha bunda. Estava excitado e murmurou em meu ouvido:
— Vou deixar escolher. Onde quer o meu pau?
Fechei os olhos. E pedi a Deus para morrer logo.
Continua amanhã
Autota : Nana Pauvolih
CAPÍTULO 35
A SOMBRA
Meu carro estava atrás do posto de gasolina, oculto. O dia estava perfeito para o que eu queria, chuvoso, frio, mantendo muita gente fora das ruas. Atrasei de propósito e depois a vi sob a marquise do ponto de ônibus, sozinha. Quando percebi que não havia testemunhas, pus o automóvel em movimento e dirigi devagar até ela, sem conseguir desgrudar os olhos de sua figura.
Emoções intensas borbulharam no meu peito, enquanto Daniela olhava para meu carro, certamente o reconhecendo. De alguma forma aquilo me exaltou, sua expressão rígida, sua palidez. O que estaria pensando? Sentindo? Em algum momento teria certeza de que era eu ou estava surpresa? Precisei acalmar a euforia, conter o ânimo para a hora certa. Mas não perderia nada até tudo se concretizar.
Parei o carro com vidro fumê em frente a ela. Baixei o vidro e nossos olhares se encontraram. Sorri, pois não pude conter o prazer abissal que se espalhou dentro de mim. Ela me via por completo, sem disfarces, na minha essência. O fato de ser a única a ter aquele privilégio antes do ataque me encheu de júbilo.
Ficou imóvel, os cabelos presos em um rabo de cavalo, tão branca quanto um fantasma. Agarrava-se ao casaco e à bolsa, obviamente tremendo. Sem uma palavra, abri a porta e esperei. Não tinha ainda prova nenhuma contra mim. E isso me tranquilizou.
Por um momento achei que sairia correndo. Seria um desperdício, me deixaria furioso. Claro que eu teria que abatê-la de qualquer jeito, um tiro e pronto. Mas e o prazer? Nunca a perdoaria por me privar de cada momento até o fim.
Ela se moveu e a excitação veio com tudo. Aproximou-se e, sem tirar os olhos dos meus, se sentou. Tudo ali dentro crepitou quando a porta bateu e nos isolou do mundo lá fora. Travei automaticamente cada saída e meu sorriso se ampliou, enquanto eu murmurava:
— Sempre soube que era corajosa.
Observei-a totalmente concentrada em mim, tão linda e jovem em seu rabo de cavalo, sua bolsa no colo, os olhos esverdeados, sérios, cheios de algo que brilhava ferozmente. Ira. Aquilo foi como atear combustível em fogo. Pus o carro em movimento, totalmente dono de mim. Mas mesmo assim sondei em volta, para ver se estávamos sendo seguidos. Relaxei.
— Obrigado por ter vindo. Por um instante achei que declinaria o convite.
— A curiosidade foi maior. Para onde estamos indo?
— Para algum lugar onde possamos conversar em paz.
— O lugar onde enterra as suas vítimas? Perto do rio?
— O rio é grande. — Dei uma risada. — Não se preocupe, não é onde os corpos foram achados. Seria arriscado demais. Digamos que vamos dar um passeio e ter uma longa conversa, Pequerrucha.
Falar seu apelido a sacudiu e soltou o ar, inflamando, com vontade de me atacar. Mantive-me alerta, mas sem me preocupar muito. Eu era muito mais do que ela podia imaginar. Fui direto ao ponto:
— Como soube de mim? Como desconfiou da gente?
— Monalisa ligou para mim quando estava sendo perseguida por você.
Aquilo me surpreendeu de verdade e apertei o volante. Nunca imaginei que Monalisa tivesse ligado para alguém antes de morrer. O pânico me envolveu sem que eu esperasse, pois significava que Daniela tinha muito mais informações do que eu imaginava.
Desconfiei que estava caindo em uma armadilha e olhei de novo pelo retrovisor, mas a rua estava vazia. Ainda assim me mantive alerta, pesando as opções e riscos.
— Não sabia de mim. Ela não disse nomes. Você que chegou a essas conclusões.
Daniela não negou. E eu soube que estava certo. Arrisquei bem quando a convidei até ali, contando com sua ignorância e suas dúvidas sobre a minha identidade, ansiosa demais para me pegar. Eu só precisava descobrir em que Daniela se garantia para estar ali.
Lancei um olhar rápido a ela, virando o carro em uma rua deserta, que mais à frente daria em outra, me embrenhando até o local em que visitei muito em minha infância e adolescência.
Senti o prazer esfomeado crescendo dentro de mim. Fitei seus olhos, aquele cabelo que ficaria ainda mais lindo ruivo, a pele branca, o pescoço esguio. Desejo quente e voraz mesclou-se à fúria que fervia em meu interior. Eu brincaria bastante com ela. Mas antes precisava ter certeza de que estava seguro.
— Estou curioso agora. Como pensa em resolver nossa situação?
— Já peguei você.
Meu coração bateu forte. Adrenalina se espalhou em minhas veias. Olhei-a e vi o medo no fundo de seus olhos, assim como a raiva avassaladora. Alguma carta tinha na manga, mas o risco foi um tempero a mais e fiquei ansioso para começar. Sorri, duvidando que pudesse fazer aquilo, uma sensação de poder ilimitado já tomando conta do meu ser. Daniela era um perigo e um desafio. Muito maior que os outros.
— Matou minha irmã por ciúmes dela. Mas agora vai pagar por isso.
— Lamento informar que não vai ser assim. Você está certa em muitas coisas. Mas errou feio duas.
Ela empalideceu, segurou a bolsa com força, manteve-se dura e rígida no banco. Seus olhos estavam bem abertos, acho que nem respirava. Mas indagou num fio de voz:
— O quê?
Vi as árvores mais à frente, se fechando, tornando nosso recanto secreto. Comecei a parar o carro.
— Não foi por ciúme de Monalisa. Foi para tirá-la da vida dele. Ela estragaria tudo. E a segunda coisa, já percebeu, não é? Logo vai encontrar a sua irmã.
Foi delicioso ver sua expressão e palidez. Gozei aquele momento como único e me enchi de felicidade. Daniela estava isolada no carro comigo, em um lugar deserto. Blefando. Ali, onde comecei a me conhecer levando os animais. Ali, onde me livrei pela primeira vez de um infeliz. E onde seria seu derradeiro fim.
— Vai pagar caro por ter se metido no meu caminho, Dani. E por ter se metido no caminho dele.
E então, voraz, avancei para ela.
CAPÍTULO 36
GABRIEL CAMPANARI
Depois que terminei de falar com minha mãe ao telefone, senti algo horrível apertar meu coração, um pressentimento muito ruim, que chegou a me deixar sem ar. Desesperado, me preocupei com minha família, mas foi Daniela que veio com tudo na minha cabeça. Tive certeza que algo nefasto ia acontecer e o sonho com Monalisa veio mais vívido do que nunca em minha mente. “Salve a minha irmã”. Por algum motivo, soube que ela estava correndo perigo.
O medo atroz me fez tentar falar com Daniela ao telefone inúmeras vezes, sem sucesso, até ser dominado pelo desespero. Desconfiei que ela tivesse ido para Conservatória ou Valença, devia ter sabido dos corpos. Resolvi partir para lá o quanto antes, mas para confirmar recorri a um conhecido especialista em comunicações, informática e satélites. Procurei seu telefone na agenda e liguei para ele às pressas.
Expliquei que sabia que o que ia pedir não era legal, mas que ele tinha meios de descobrir. Ofereci uma grana irrecusável, se localizasse o telefone de Daniela. Passei todos os dados que pediu e ele me disse que retornaria o telefonema tão logo tivesse uma resposta.
Fiquei nervoso, ansioso, sem conseguir me concentrar mais em nada. Saí, decidindo me dirigir para onde o instinto mandava, enquanto não vinha a certeza. Já estava na rua, indo para Valença, quando meu conhecido ligou de volta. Atendi logo, com o coração disparado.
— Ela fala de Conservatória. – Ele disse logo.
— Entendi. Hoje mesmo transfiro o dinheiro para sua conta, Josué. Obrigado.
— De nada, Gabriel. Sempre estou às ordens.
Pelo menos eu estava no caminho certo, mas ainda mais preocupado. Liguei para minha mãe.
— Gabriel!
— Mãe, quando o rapaz foi assassinado?
— O rapaz? O corpo que acharam?
— Sim. — Não sei, acho... — Parecia confusa.
— Se não me engano sumiu na semana retrasada.
— Quando?
— No sábado em que você e Davi estiveram aqui. Sim, foi isso mesmo. Por quê?
— Nada.
— Gabriel...
— Depois ligo. Tenho que fazer uma coisa agora.
— Mas...
— Está tudo bem. Beijos.
Desliguei e senti um baque, como um soco no estômago. Não, não podia ser. Com certeza tinha outra explicação. Liguei para o celular de Davi e não atendeu. Então tentei no escritório.
— Cláudia, onde está Davi?
— Ele saiu. Tem uns trinta ou quarenta minutos.
— Disse aonde ia?
— Não. Quer que eu faça alguma coisa?
— Não. — Desliguei, acelerando.
Eu não podia estar pensando aquilo. Era loucura.
Claro que Davi não tinha nada a ver com aqueles assassinatos. Mas Daniela nos investigava, desconfiava de um de nós dois. Os corpos foram encontrados e ela partira para o local, como se tivesse relação com Monalisa. O rapaz tinha sido assassinado no final de semana que fomos em Conservatória. Monalisa tinha pedido que eu salvasse sua irmã. Contei para Davi que elas eram irmãs. Davi tinha sumido.
O ar me faltou, mas tratei de me acalmar, sabendo que era apenas uma crise de pânico. Então tive uma ideia e liguei o rastreador por satélite. Por medo de roubo e sequestro, tanto eu quanto Davi tínhamos contratado uma firma que rastreava nossos automóveis e um podia ver para onde seguia o carro do outro. Digitei os códigos no aparelho e consegui rastrear o carro do meu amigo. O choque me engolfou ao ver que ele quase chegava em Conservatória.
Fiquei duro, gelado, uma dor atroz a me apunhalar.
— Não... – Murmurei dentro do carro. Tinha que haver outra explicação. Talvez estivesse tão preocupado com Daniela quanto eu, soubesse de algo mais. E estivesse indo ajudá-la.
Acelerei, cheio de indagações e medos, sem poder atinar que a realidade fosse tão chocante. E então relembrei do sonho, dias antes, na noite em que nós três começamos a transar e eu não pude continuar, cheio de ciúmes, me dando conta de que a queria só para mim. Na mesma noite em que Rômulo havia ficado espiando a gente.
Depois que Davi saiu com Daniela, discuti com meu irmão e ele encheu minha cabeça com aquela velha ladainha de que não confiava em Davi. Fui para meu quarto, tomei um banho e caí na cama, perturbado, agoniado, nervoso. Com raiva.
Desde o primeiro momento, soube que ela mudaria algo em minha vida. Seria importante. Voltei daquele fim de semana em Ilha Grande certo de uma coisa: estava apaixonado por ela. Cheguei a ter certeza de que sentiu algo especial também. Tinha sido um banho de água fria perceber que para Daniela era apenas sexo, que queria não apenas comigo, mas com Davi também.
Lutei para provar a mim mesmo que era mesmo só sexo. Eu a foderia como a uma qualquer. Mas descobri mais duas coisas: não era possível separar meus sentimentos do meu corpo naquele caso. E não queria vê-la trepando com meu amigo. Não do jeito que eu me sentia.
Eu me enganei feio naquela história. O que pensei que fosse recíproco, tinha sido só do meu lado. E decidi cair fora para não me envolver mais e sofrer.
Rolei na cama, perturbado, perdido. E só muito depois, consegui dormir.
Era uma praia. Deserta. Chovia muito, em cântaros. Eu andava pisando descalço na areia molhada. Reconheci o lugar. Grumari. Uma sensação ruim me golpeou, de tristeza e desespero e lembrei de outro dia, quando soube o que aconteceu e corri para lá. Quando vi o corpo de Monalisa jogado em um canto perto de umas árvores e pedras, todo molhado de chuva, as marcas roxas no pescoço, os longos cabelos ruivos espalhados sobre a areia molhada. Os olhos imobilizados para sempre. Nunca poderia esquecer aquela dor que me rasgou por dentro. A sensação de impotência, o desejo de poder tê-la nos braços, fazê-la acordar enquanto me seguravam à força e não me deixavam chegar perto. O ódio pela maldade de tudo aquilo.
Eu estava ali de novo. Não queria estar. Nunca mais consegui pisar em Grumari desde aquele dia. Parei, olhando para o mar cinzento, querendo recordar como cheguei ali. Mas estava confuso demais para pensar. Virei-me disposto a ir embora. Foi quando a vi.
Estava parada, alta e esguia, a alguns passos de mim. Continuava jovem e linda. Os cabelos ruivos quase até a cintura. As sardas no nariz que eram um encanto. Tinha grandes e doces olhos castanhos, sempre doces como ela. Sorriu do jeito que sempre fazia. Eu costumava achar que seu sorriso para mim era diferente do que o que dava para outras pessoas. E acho que era. O meu era especial, com seu amor.
Saudade e dor me golpearam, assim como a esperança. Então era mentira? Ela estava viva? Dei um passo para frente, ansioso, emocionado, mas sua voz suave me deteve:
— Não. Não pode vir aqui, Gabriel.
Então me dei conta que não estava molhada. Mesmo em meio a toda aquela chuva, seus cabelos caíam secos e ondulados, seu vestido esvoaçava sem uma gota, a pele parecia quase translúcida. Quis falar, quis andar, quis fazer tanta coisa, mas me senti preso no lugar, imobilizado. A água descendo gelada por minha cabeça, me fazendo tremer de frio.
— Eu sei. – Ela sorriu, daquele jeito só meu, brilhando com seu amor. – Sei que sentiu minha falta. Também senti a sua.
— Mas o quê... — Consegui balbuciar.
— Não posso demorar, Gabriel. – Parecia então um pouco nervosa, até mesmo desesperada. – Precisa me ajudar. Salve a minha irmã. Por favor.
Não entendi. Quis me mover, tocá-la, fitar seus olhos de perto, mas não conseguia.
— Prometa que vai salvar minha irmã. Prometa. – Implorou. — A Pequerrucha. Ela corre perigo. Salve-a. Por favor.
Parecia sumir diante dos meus olhos, ficar cada vez mais translúcida.
— Monalisa! – Gritei desesperado. Algo me prendia, como se braços invisíveis estivessem à minha volta.
Acordei em meu quarto, sentando na cama com o coração disparado, a garganta seca, como se tivesse gritado muito. Olhei em volta confuso e só então me dei conta de que foi um sonho.
Passei a mão trêmula pelo cabelo, nervoso. Não foi apenas um sonho. Tinha sido real demais. Sua voz, seu cabelo, seus olhos e seu sorriso. Era Monalisa. E o que me pediu com tanta vontade, com todo seu ser, quase com desespero. Para salvar sua irmã.
Levantei da cama, ansioso. No decorrer da minha vida tive sonhos assim e alguns eu sabia ser um aviso, como da vez que implorei a meu pai para não ir trabalhar e aconteceu um acidente que matou alguns colegas seus do trabalho. Premonições, sensações, avisos.
Procurei me acalmar. Estava abalado, pois foi como ver Monalisa de verdade na minha frente, depois de seis anos sem pôr os olhos nela, vivendo apenas com as lembranças. Era uma sensação de dor e saudade, mas também de alívio. De saber que ainda existia. Nem que fosse dentro de mim ou em meus sonhos.
Fui até a janela e a abri, respirando o ar frio da noite, buscando me acalmar, analisar aquilo.
Ela já tinha me falado da irmã caçula. Eu sabia de sua história, de como fugiu do padrasto que a estuprou, da mãe que não acreditou nela, de sua preocupação com a irmã que chamava carinhosamente de Pequerrucha. Dizia que temia que o pai de sangue da menina fizesse com a filha o mesmo que fez com ela. Que queria trazê-la para morar em sua companhia. E que faria isso logo. Mas nem teve tempo.
Fiquei tão mergulhado em minha dor, após seu assassinato, que nem me lembrei mais da menina. A Pequerrucha, de quinze anos, tinha ficado esquecida, perdida para sempre em um passado longínquo. Por que agora Monalisa aparecia e me falava justamente dela? O que eu poderia fazer por uma garota que nem conhecia?
Garota não. Devia estar com vinte e quatro anos. Uma mulher. Tentei lembrar onde viveria, talvez ainda em Jaconé, de onde Monalisa viera. Perturbado, não vi coerência em tudo aquilo. Mas decidi investigar no dia seguinte.
Fiquei tão abalado pelo sonho que saí de casa mal o dia clareou e, depois de tanto tempo, voltei a Grumari. Foi ruim demais, me encheu de lembranças ruins. Naquele dia mesmo, mais tarde, encontrei Manolo. E descobri que a menina era Daniela.
Tudo fazia sentido. Ela corria risco. E eu não conseguia sequer imaginar que Davi tivesse algo a ver com aquilo. Era loucura! Com certeza ele tinha seus motivos para estar indo ao encontro de Daniela e a ajudaria.
Sem que pudesse conter, lembranças desfocadas e fora de ordem surgiram como espocadas na minha mente. Uma vez em que saímos juntos, ainda rapazes. Paquerei uma garota e me deu mole. Quando me aproximei, fui ver que tinha namorado e o cara me deu um soco. Davi perdeu a cabeça. Voou nele e o socou até deixá-lo desacordado. Só depois de muita luta consegui tirá-lo de cima do cara, antes que o matasse. Estava irreconhecível, uma fúria fria em seu rosto deixando seus olhos vidrados. Senti que o mataria e nem notaria.
Depois, quando seguia com Davi para casa, perguntei se estava louco, se queria parar na cadeia. E ainda estava esquisito, os olhos frios, a respiração pesada. Disse algo que me fez sentir mal, ter aquela impressão ruim e ao mesmo tempo inexplicável. Ele disse que, por mim, mataria.
Aquilo ficou guardado em algum ponto dentro de mim. Uma ou outra vez percebi aquele olhar em seu rosto, mas mudava logo, sumia. E sempre achei que era coisa da minha cabeça, pois era meu amigo, meu irmão, meu companheiro de uma vida inteira. Ser estourado, perder a cabeça de vez em quando não era pecado. E todo mundo tinha seus defeitos. De resto, eu confiava nele cegamente.
Senti-me revoltado ao pensar naquilo. E me concentrei em dirigir o mais rápido possível. Tentei ligar para ele várias vezes durante o percurso, mas não atendeu.
CAPÍTULO 37
DANIELA PRADO
O medo estava dentro de mim. Mas com ele veio algo como alívio, pois de uma coisa tive certeza: Gabriel não era aquele monstro.
Era estranho como em momentos de puro pânico e desespero, uma parte de nós se mantinha calma. Quando ele veio com tudo para cima de mim, seu rosto transformado em uma máscara mortal e animalesca, eu reagi, puxando a arma de dentro da bolsa.
Margarida com certeza estava vendo e ouvindo tudo, já sabia a identidade do assassino e nossa localização, enviava ajuda. Ainda assim gritei, para não restar dúvida:
— Vou te matar, Davi!
Não sei se demorei demais ou se ele tinha reflexos de um tigre, pois também reagiu na hora. Apertei várias vezes o gatilho, atirei para acertar sua cara, mas recebi uma cotovelada violenta no braço e os tiros se perderam dentro do carro. A arma bateu no porta luvas e foi para o chão. Gritei, pois parecia que tinha quebrado meu braço direito.
Um tiro trincou o para-brisa, outro, acertou Davi, pois o ouvi xingar e berrar:
— Sua puta, você atirou em mim!
Mas não tive tempo de olhar. Eu me abaixei, gemendo de dor, em busca da arma. Davi puxou meu rabo-de-cavalo violentamente, trazendo-me de volta ao banco e gritei, lutei, mas o braço doía horrores e eu mal podia movê-lo. Ele era forte demais. Golpeou meu rosto com as costas da mão e bati com a cabeça na porta, sangue saindo da minha boca e espirrando no vidro.
Fiquei tonta, com dor, latejando. O pânico veio quando me puxou de volta, suas duas mãos grandes se fechando em meu pescoço, apertando. Fitei seus olhos negros possuídos de chamas demoníacas e soube que ia morrer. Pensei em Margarida, vendo ou ouvindo tudo, seu desespero. Até conseguir ajuda, eu já estaria morta.
— Puta desgraçada, acha que pode contra mim? – Apertou com ódio e sufoquei. Tentei arranhá-lo, chutá-lo, mas meu braço direito estava mole e Davi se debruçava sobre mim no banco, não me dava opções de fuga.
Ao longe ouvi o telefone tocando, o celular dele. Parou um pouco, arfante, olhando em meus olhos.
— É o toque do Gabriel. – Murmurou. – Isso é por tentar tirar meu irmão de mim, puta!
Vou livrar o mundo de sua sujeira! E voltou a apertar. Tentei reagir, me debati, falei em arquejos roucos, quase sem voz:
— Vão... pegar ... você... Deixei provas...
— Ah, é? Como, se nem sabia que era eu? – Riu e me sacudiu, batendo com minha cabeça no vidro do carro de novo. Apertou tanto que me desesperei sem ar, cheia de dor e desespero, perdendo as forças.
Lágrimas desceram dos meus olhos e tive vontade de desistir. A imagem de Gabriel veio nítida em minha mente. Vi seus olhos azuis, me arrependi por não ter acreditado no sentimento profundo que despertava em mim e que fiz de tudo para não aceitar. Era tarde demais.
Tudo foi ficando escuro. Sabia que devia lutar até o final, mas me sentia muito cansada. Ouvi a voz de Davi ao longe, enquanto aliviava o aperto em meu pescoço e o ar passava ardente até meus pulmões:
— Não tão fácil assim, meu bem. Tenho planos melhores. Afinal, você merece. Você quase conseguiu. Quase. – E deu uma risada rouca, me largando mole no banco.
Senti-me fraca e tonta. Doía respirar, doía tentar pensar. Quando Davi me puxou para fora pelo braço direito, vi estrelas de tanta dor e caí no chão enlameado e cheio de folhas mortas ao lado da porta do carro, uma chuva fina e fria batendo sobre mim como agulhadas.
— Levante! – Ergueu-me da lama, mas minhas pernas pareciam gelatinas. Tentei falar, fugir, fazer algo, mas caí de novo no chão, de joelhos, a garganta pegando fogo, o braço doendo, a cabeça girando. – Pensei que fosse mais forte! Só isso?
Ele gritou com desprezo. Consegui erguer os olhos, firmar a visão nele de pé à minha frente. Parecia um gigante, grandalhão, moreno, furioso, molhado de chuva. Seus olhos eram frios como nunca vi, mas por dentro tinham fúria. Uma fúria assassina. Mostrou-me o braço esquerdo, de onde escorria sangue até a mão.
— Só um arranhão. Você não é de nada, Dani. Nem com uma arma na mão.
Pensei na arma, largada no chão do carro, junto com minha bolsa. Pelo menos Margarida não ia me ver, nem me ouvir morrendo. Mas estava gravando tudo. As provas estavam ali. Davi não sairia impune.
— Tá, não quer cooperar? Tudo bem. – Abaixou-se e agarrou um punhado do meu cabelo, que tinha se espalhado molhado. Puxou violentamente, arrastando-me deitada pelo chão cheio de lama, levando-me para perto das árvores. Quis gritar, mas minha garganta não permitiu, como se estivesse em brasa. Bati as pernas, agarrei seu pulso com a mão esquerda, mas continuou a me arrastar facilmente. – Prefiro seu cabelo ruivo, como de Monalisa. Agora entendo porque mantem a boceta raspadinha. Devia ser ruiva lá também. Como ela.
Sua voz era tranquila, até animada. O desgraçado se divertia. Gostava de fazer aquilo. Era um verdadeiro monstro em sua essência, que se escondia em uma aparência linda, sedutora, bem humorada. Entendi porque matou tantas pessoas. Era um predador natural, com um disfarce perfeito.
— Sempre fiquei impressionado com os pelos ruivos de Monalisa. Parecia ter fogo entre as pernas! Igual a irmã. Nos divertimos juntos, principalmente aquela vez com Gabriel. Nunca vou esquecer. – Continuou a me puxar entre as árvores. Folhas e sujeira vinham com lama para cima de mim. Pedrinhas arranhavam minha pele. O couro cabeludo ardia onde agarrava o cabelo com violência. Comecei a ficar mais forte, a me debater mais, no entanto, isso o fez rir. – Isso, Dani. Lute. Mostre que não é uma molenga! Estamos quase chegando. Ao paraíso, meu bem!
— Solte... – Consegui murmurar, rouca, a garganta como uma fornalha, o ódio violento dentro de mim.
Davi riu ainda mais.
A chuva nos banhava e então senti as árvores se espaçarem, o solo ficar mais macio e úmido, até que me soltou. Estava na beira do lago cercado pela mata. De pé, ao meu lado, Davi se abaixou, sua argola de ouro brilhando na orelha, seus olhos ardendo.
— Calma, minha bela. Vou te dar prazer. Vai morrer com meu pau bem enterrado na sua bocetinha. E a última coisa que vai ver, serão meus olhos.
Rasgou violentamente minha blusa, arrancando-a como um animal. Fechei os dedos em volta da terra molhada do lago e me preparei, o coração disparado, o pânico latejando em meu interior. Tentou tirar minha calça, mas o jeans estava molhado, pesado, com lama. Xingou e o puxou para baixo com força, junto com a calcinha, até que me deixou nua. Sorriu e veio para cima de mim. Foi quando joguei terra em seus olhos.
— Porra! – Berrou, levando as mãos ao rosto, erguendo-se momentaneamente cego.
Rolei para o lado, tentei levantar. Escorreguei, o braço machucado não serviu como apoio, mas a vontade de viver foi mais forte. Apoiei a mão esquerda no chão, tremendo, conseguindo me levantar e correr. Estava perdida, sem direção, mas me baseei pelas árvores. Se eu pudesse chegar ao carro, pegar a arma, escapar ...
Mas não fui muito longe. Davi agarrou meu cabelo e puxou. Deu um soco em minhas costas que tirou meu ar e me derrubou de bruços no chão. A dor foi violenta, dura, me deu ânsias.
— Filha de uma puta! – Berrou ensandecido. Agarrou minhas pernas, arrastou-me. Terra entrou em meu nariz e boca. Cuspi, sufoquei. Então me largou e senti minhas pernas mergulharem na água gelada do lago.
Montou em minha bunda, sentando sobre ela, agarrando meu cabelo pela nuca e puxando minha cabeça para trás. Eu tossi, engasguei, me enchi de medo. Davi então puxou um canivete do bolso e o encostou em meu pescoço, dizendo furioso perto do meu ouvido:
— Odeio sangue. Mas me deixou tão puto que quero te cortar inteira, como uma porca! Mais uma e abro seu pescoço!
Fiquei imóvel, sabendo que era o fim. Não havia como nem onde escapar. Meu corpo todo doía. Até respirar era difícil. E então ele largou meu cabelo, escorregou a mão livre até minha garganta e a fechou sobre ela. O canivete continuava ali, perto da jugular. Lentamente, moveu o quadril e senti seu pau duro roçar minha bunda. Estava excitado e murmurou em meu ouvido:
— Vou deixar escolher. Onde quer o meu pau?
Fechei os olhos. E pedi a Deus para morrer logo.
Continua amanhã
Nossa 😔
ResponderExcluirNossa q monstro
ResponderExcluir😳😮
ResponderExcluirManda mais por favor😥
ResponderExcluirNossa, sabia que era ele...... que monstro..
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